“Queremos jogar luz nos arquivos da ditadura, espanar o mofo do esquecimento forçado. Precisamos, como nação, saber o que aconteceu, como aconteceu, quem determinou e quem executou ordens que resultaram no desaparecimento de presos políticos”
Wadih Damous*
É esta a pergunta que a Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Rio de Janeiro (OAB-RJ), faz à sociedade e ao governo brasileiro quando empreende a Campanha pela Memória e pela Verdade, para a abertura dos arquivos da ditadura. E vamos insistir, tanto quanto se faça necessário, para obter uma resposta. Há quem, assolado pela inquietude e talvez por antigos fantasmas, procure impingir a pecha do revanchismo a esse movimento democrático e plural, e a esses respondemos que, longe disso, nosso objetivo é comum: virar essa página infeliz da nossa história.
Há diferenças, claro, no entendimento de como se isso será possível. Nós acreditamos que a história de um país não pode ser apagada nem varrida para debaixo do tapete, simplesmente, como se um período conturbado de sua vida institucional, manchado de sangue, jamais tivesse existido. Já escrevemos muitas páginas adiante, já amadurecemos na dor, já conseguimos consolidar e sustentar o estado democrático de direito, com nossas instituições funcionando bem, obrigado. Temos, nas nossas Forças Armadas, exemplos de atuações dignificantes, como a ajuda ao povo sofrido do Haiti.
Mas a pacificação nacional em torno dos anos de chumbo ainda não se deu, porque mais de uma centena de brasileiros continua desaparecida há mais de três décadas, negada a cada um sua condição de cidadão detentor de direitos legítimos, negado o direito consuetudinário de suas famílias lhes darem sepultura digna, finalmente.
É difícil, usando apenas as faculdades de raciocínio, entender porque esse resgate da história é causa de tanta insegurança e protestos ruidosos de setores militares que tentam se impor ao governo civil. Para ficarmos entre os países latino-americanos, Paraguai, Uruguai, Chile e Argentina também passaram por ditaduras, até mais cruentas, e conseguiram abrir seus arquivos sem que suas instituições democráticas fossem abaladas. O mundo não caiu sobre a cabeça de ninguém, nem dos argentinos e chilenos que puseram na cadeia, após os devidos processos legais, os algozes dos direitos humanos.
Indo um pouco mais longe, para a África do Sul, poderíamos ainda nos espelhar no exemplo de sabedoria de Nelson Mandela. O regime do apartheid o manteve encarcerado durante 27 anos, sofreu tortura e isolamento. Liberto, a democratização permitiu-lhe que chegasse à presidência. Mandela, a quem sobravam razões para ressentimentos, compreendeu que mais importante do que a prisão dos torturadores era que as barbaridades não se repetissem. O projeto de lei que propôs anistiava agentes da repressão que admitissem publicamente seus crimes.
Mas sob a seguinte condição: qualquer fato omitido poderia levar o autor a responder por ele nos tribunais. Houve cerca de 3.500 confissões de violações de direitos humanos de militantes políticos.
Aqui, enquanto se louva o proclamado espírito conciliatório brasileiro, procura-se manter em prontidão um medo quase atávico de enfrentar nossas vergonhas, encarar um passado que nos machucou tanto. Mas não nos preocupa, nesse momento, a punição dos agentes públicos que agiram a mando do Estado e foram responsáveis por crimes de morte, tortura, sequestro e estupro de pessoas que estavam sob sua custódia, tendo o direito constitucional de garantia de integridade.
Move-nos, sim, o firme propósito de um encontro com a verdade dos fatos. Queremos jogar luz nos arquivos, espanar o mofo do esquecimento forçado. Precisamos, como nação, saber o que aconteceu, como aconteceu, quem determinou e quem executou ordens que resultaram no desaparecimento de presos políticos. Mas para que isso servirá – podem perguntar – além de reavivar velhas feridas? Exatamente para que elas possam cicatrizar. E, tão importante quanto, criarmos anticorpos nas novas gerações para, por meio do conhecimento do que aconteceu naqueles porões, jamais permitirem a volta do arbítrio e da tortura.
*Wadih Damous é presidente da OAB/RJ.
Fonte: http://congressoemfoco.uol.com.br/
É esta a pergunta que a Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Rio de Janeiro (OAB-RJ), faz à sociedade e ao governo brasileiro quando empreende a Campanha pela Memória e pela Verdade, para a abertura dos arquivos da ditadura. E vamos insistir, tanto quanto se faça necessário, para obter uma resposta. Há quem, assolado pela inquietude e talvez por antigos fantasmas, procure impingir a pecha do revanchismo a esse movimento democrático e plural, e a esses respondemos que, longe disso, nosso objetivo é comum: virar essa página infeliz da nossa história.
Há diferenças, claro, no entendimento de como se isso será possível. Nós acreditamos que a história de um país não pode ser apagada nem varrida para debaixo do tapete, simplesmente, como se um período conturbado de sua vida institucional, manchado de sangue, jamais tivesse existido. Já escrevemos muitas páginas adiante, já amadurecemos na dor, já conseguimos consolidar e sustentar o estado democrático de direito, com nossas instituições funcionando bem, obrigado. Temos, nas nossas Forças Armadas, exemplos de atuações dignificantes, como a ajuda ao povo sofrido do Haiti.
Mas a pacificação nacional em torno dos anos de chumbo ainda não se deu, porque mais de uma centena de brasileiros continua desaparecida há mais de três décadas, negada a cada um sua condição de cidadão detentor de direitos legítimos, negado o direito consuetudinário de suas famílias lhes darem sepultura digna, finalmente.
É difícil, usando apenas as faculdades de raciocínio, entender porque esse resgate da história é causa de tanta insegurança e protestos ruidosos de setores militares que tentam se impor ao governo civil. Para ficarmos entre os países latino-americanos, Paraguai, Uruguai, Chile e Argentina também passaram por ditaduras, até mais cruentas, e conseguiram abrir seus arquivos sem que suas instituições democráticas fossem abaladas. O mundo não caiu sobre a cabeça de ninguém, nem dos argentinos e chilenos que puseram na cadeia, após os devidos processos legais, os algozes dos direitos humanos.
Indo um pouco mais longe, para a África do Sul, poderíamos ainda nos espelhar no exemplo de sabedoria de Nelson Mandela. O regime do apartheid o manteve encarcerado durante 27 anos, sofreu tortura e isolamento. Liberto, a democratização permitiu-lhe que chegasse à presidência. Mandela, a quem sobravam razões para ressentimentos, compreendeu que mais importante do que a prisão dos torturadores era que as barbaridades não se repetissem. O projeto de lei que propôs anistiava agentes da repressão que admitissem publicamente seus crimes.
Mas sob a seguinte condição: qualquer fato omitido poderia levar o autor a responder por ele nos tribunais. Houve cerca de 3.500 confissões de violações de direitos humanos de militantes políticos.
Aqui, enquanto se louva o proclamado espírito conciliatório brasileiro, procura-se manter em prontidão um medo quase atávico de enfrentar nossas vergonhas, encarar um passado que nos machucou tanto. Mas não nos preocupa, nesse momento, a punição dos agentes públicos que agiram a mando do Estado e foram responsáveis por crimes de morte, tortura, sequestro e estupro de pessoas que estavam sob sua custódia, tendo o direito constitucional de garantia de integridade.
Move-nos, sim, o firme propósito de um encontro com a verdade dos fatos. Queremos jogar luz nos arquivos, espanar o mofo do esquecimento forçado. Precisamos, como nação, saber o que aconteceu, como aconteceu, quem determinou e quem executou ordens que resultaram no desaparecimento de presos políticos. Mas para que isso servirá – podem perguntar – além de reavivar velhas feridas? Exatamente para que elas possam cicatrizar. E, tão importante quanto, criarmos anticorpos nas novas gerações para, por meio do conhecimento do que aconteceu naqueles porões, jamais permitirem a volta do arbítrio e da tortura.
*Wadih Damous é presidente da OAB/RJ.
Fonte: http://congressoemfoco.uol.com.br/
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