sexta-feira, 26 de março de 2010

FERREIRA GULLAR

Narciso e Narciso


Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),

o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira. 
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é

como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.

               
                           E se amam mentindo                                 no fingimento que é necessidade
                                e assim
               
                mais verdadeiro que a verdade. 
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
                    
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado

               
        - e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora

                    
se odiando. 
O espelho
               
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam

                      
que o inferno de Narciso
                      
é ver que o admiravam de mentira.

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