A. INTRODUÇÃO
1. Em conformidade com a Declaração da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), "Os direitos humanos da mulher e da menina são partes inalienáveis, integrantes e indivisíveis dos direitos humanos universais". No sistema interamericano, os Estados membros reconheceram que o melhoramento da capacidade da mulher de exercer livre e plenamente seus direitos humanos é um desafio crucial para a consolidação dos sistemas democráticos no hemisfério.(15) A prioridade da melhoria do efetivo exercício da democracia em todo o hemisfério é um requisito prévio essencial para fazer avançar o respeito aos direitos humanos. Além disso, a democracia verdadeiramente participativa não pode prosperar até que todos os segmentos da sociedade participem plenamente da vida nacional.(16)
2. No Brasil, as organizações de direitos da mulher abriram novo espaço para a participação da mulher na vida nacional, trabalhando no contexto dos esforços iniciados no começo da década de 80 a fim de reorganizar a sociedade e fazer com que o exercício da democracia fosse cada vez mais eficaz. Em conseqüência dessa abertura, adotaram-se iniciativas importantes, tanto no setor público como no privado, para combater a discriminação contra a mulher e os seus efeitos. O movimento de mulheres no Brasil, apoiado pelas ações de centenas de organizações não-governamentais que trabalham na área dos direitos da mulher, tem exercido ativo lobbying em prol dos direitos da mulher e realizado grandes esforços no sentido de encontrar medidas concretas para proteger o direito da mulher a uma vida livre da violência. Por sua vez, o Governo tem aprovado e aplicado diversas iniciativas importantes, que visam a melhorar a observância dos direitos humanos da população feminina.
3. Apesar desses progressos e muito embora a lei proíba a discriminação por motivo de sexo, a Comissão tem recebido queixas e informações que detalham a persistência de discriminações de facto e de jure contra a mulher em diversas esferas, tal como o demonstra o fenômeno da violência contra a mulher(17). As recomendações contidas neste capítulo levam em consideração as iniciativas tomadas tanto no setor público como no privado, e refletem o fato de a sociedade brasileira ter compreendido a necessidade de adotar medidas adicionais para consolidar e impulsionar ainda mais os avanços já registrados.
B. A CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL E O PROBLEMA DA DISCRIMINAÇÃO
4. No âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, os Estados Partes da Convenção Americana comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos, "sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social". A Convenção Americana sobre Direitos Humanos requer que a proteção de todos os direitos e liberdades mencionados seja efetivada para que homens e mulheres desfrutem integralmente de seus direitos humanos" (Artigo 2). Quanto à igualdade, a Convenção Americana estabelece que todas as pessoas são iguais perante a lei e, por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei" (artigo 24), e que os Estados Partes devem especificamente, "tomar medidas apropriadas no sentido de que a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo" (Artigo 17.4). No que se refere às proteções por motivo de sexo, a Convenção proíbe o tráfico de mulheres (Artigo 6.1). O Brasil, além de ser parte na Convenção Americana e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificou em 1995 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará".(18)
5. Ao nível internacional, o Brasil é Parte na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, bem como do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que incluem importantes proteções referentes aos direitos humanos da mulher.(19) Cumpre recordar que, apesar de o Brasil ter formulado certas reservas ao passar a ser uma das Partes na Convenção sobre Eliminação de todas as Formas e Discriminação contra a Mulher, em 1984, estas foram retiradas em 1994. O Brasil apoiou a Declaração da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que condenou a violência contra a mulher; a Declaração sobre Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas; e a Declaração e Programa de Ação aprovados pela Quarta Conferência Mundial sobre Direitos da Mulher (Beijing, 1995).
6. O primeiro Conselho Estadual sobre a Condição da Mulher foi estabelecido em São Paulo, em 1983, com o fim de propor medidas a serem adotadas e formular recomendações sobre a integração da mulher na vida política, econômica e cultural do Estado. Essa iniciativa repetiu-se em todo o Brasil, tanto a nível estadual como no municipal. A Comissão sobre a Violência contra a Mulher desse Conselho, promoveu ativamente a criação da primeira Delegacia da Mulher, em São Paulo, em agosto de 1985.(20) Essa resposta específica e sem precedentes para delitos de violência contra a mulher serviu de modelo não apenas no Brasil, mas também em outros países.(21) O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi estabelecido pelo Presidente Sarney em 1985, através de iniciativa do Ministério da Justiça, com a finalidade de assegurar a adoção de políticas destinadas a acabar com a discriminação da mulher e facilitar sua participação na vida política, econômica e social do Brasil.
7. Como resultado da sintonia entre o setor não-governamental e o CNDM, a Constituição Federal de 1988 reflete vários avanços importantes em benefício dos direitos da mulher. O Artigo 5º estabelece a igualdade de todos perante a lei e que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (Seção I). É obrigação fundamental do Estado promover o bem de todos, sem discriminação (Artigo 3º, Seção IV). Além disso, a Seção XLI do Artigo 5º dispõe que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais. Os direitos trabalhistas são assegurados pela Constitução Federal igualmente para homems e mulheres. O artigo 7 da Constitução, enumera ainda, direitos especificos das trabalhadoras mulheres, como licença maternidade e a proteçao do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos.
8. No âmbito do Programa Nacional de Direitos Humanos, as iniciativas propostas pelo Governo com vistas a melhorar os direitos humanos da mulher incluem, inter alia: o apoio ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e ao Programa Nacional para Prevenir a Violência contra a Mulher; esforços de apoio para prevenir a violência sexual e doméstica contra a mulher, prestar assistência integrada à mulher em situação de risco e educar o público a respeito da discriminação e da violência contra a mulher, e das garantias disponíveis; revogação de certas disposições discriminatórias do Código Penal e do Código Civil sobre pátrio poder; promoção do desenvolvimento de enfoques orientados para a condição de homem ou mulher na capacitação dos agentes do Estado e no estabelecimento de diretrizes para os currículos de ensino primário e secundário; e promoção de estudos estatísticos sobre a situação da mulher no trabalho. O Programa também recomenda que o Governo implemente as decisões consagradas na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
9. Apesar de várias iniciativas para modernizar a legislação interna e conformá-la às obrigações internacionais, como os compromissos da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ainda permanecem vigentes, no texto da lei, uma série de disposições anacrônicas e discriminatórias(22). O Programa Nacional de Direitos Humanos identificou, para fins de revogação, várias disposições do Código Civil sobre pátrio poder e algumas disposições do Código Penal referentes à violação e agressão da mulher; outras disposições foram classificadas de anacrônicas e prejudiciais no relatório do Brasil preparado para a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995).(23) Por exemplo: certos delitos sexuais continuam a ser considerados como crimes contra os costumes, à diferença de outros delitos contra a pessoa.(24) A "honestidade" continua a ser um requisito legal para que uma mulher seja identificada como vítima de certos delitos, e o matrimônio entre o autor do crime e a vítima ainda pode cancelar o processo pela prática de certos delitos.(25) Muito embora seja reconhecido, há certo tempo, a necessidade de revogá-las, essas disposições permanecem vigentes na legislação brasileira.
10. Ao passo que a lei reconhece a igualdade entre homens e mulheres no Brasil, o Estado reconhece que "as mulheres brasileiras, que representam pouco mais de metade da população do país (50,1% em 1990), ainda se defrontam com dificuldades para participar plenamente de todos os aspectos da vida econômica e política nacional".(26) Cumpre adotar novas medidas com vistas a assegurar que as reformas legais ou de outra índole sejam devidamente aplicadas, para assegurar a livre e plena participação da mulher na vida nacional.(27)
C. A MULHER BRASILEIRA E O TRABALHO
11. Na esfera do trabalho, o Artigo 7º da Constituição proíbe, inter alia, diferenças de salário por motivo de sexo; estabelece certos incentivos para fomentar a participação da mulher no mercado de trabalho, proporciona licença remunerada à gestante por 120 dias e licença-paternidade de cinco dias. O Código Trabalhista contém estipulações adicionais a respeito dos direitos da mulher no local de trabalho.
12. Em setembro de 1996, estabeleceu-se o Grupo de Trabalho Governamental para Eliminar a Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (GTEDEO), onde participa o Conselho Nacional dos Direitos da Mulhter (CNDM). Seu principal objetivo é à eliminação da discriminação por razões de sexo e à melhoria da implementação das disposições constitucionais contra a discriminação, da lei nacional e do Convênio 111 da Organização Internacional do Trabalho.
13. Embora a discriminação nos salários, nas contratações e no exercício de funções seja proibida por lei, o Governo reconheceu que "a discriminação por razões de sexo ainda persiste no mercado de trabalho".(28) Em fins de 1994, o Governo informou que as mulheres com educação e conhecimentos idênticos aos dos homens ganhavam 54% dos salários a estes pagos".(29) A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística publicou os resultados de uma pesquisa segundo a qual, em termos gerais, os homens receberam sete vezes o salário mínimo, ao passo que as mulheres receberam três ou quatro vezes essa quântia. E o campo da educação profissional é de ressaltar que 42% das pessoas matriculadas nos cursos oferecidos são mulheres.
14. Apesar de a Constituição e a Consolidação das Leis do Trabalho proibirem a despedida de mulheres grávidas, informações recebidas pela Comissão indicam que isto continua a ocorrer e que alguns empregadores continuam a eliminar as candidatas a trabalho em estado de gravidez e as mulheres em idade fértil ou, em certos casos, exigem das mulheres provas de esterilização como condição de emprego. Uma das tarefas do GTEDEO é combater essa prática, assegurando a aplicação total da lei que a proíbe.
15. A prostituição forçada é uma complexa violação dos direitos humanos que pode implicar o uso ilícito de trabalho forçado, o tráfico de mulheres e meninas e a violência. A Comissão não pôde reunir informações suficientemente atualizadas para que o alcance desse problema no Brasil pudesse ser plenamente considerado. O Governo adotou algumas medidas iniciais para abordá-lo, tendo em vista os "relatórios sobre centenas de meninas que vivem em condições de servidão em lugares remotos de prospeção de ouro no Amazonas". Dentre essas iniciativas inclui-se, além da realização de diligências policiais para localizar e libertar algumas meninas, uma iniciativa para informar sobre a tortura e o assassinato de menores mantidas em escravidão no Norte, e a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.(30) Tais indícios apontam para a provável existência de um padrão de graves violações de direitos humanos em certas localidades, que requerem resposta imediata e integrada para proteger as vítimas e assegurar a investigação, a abertura de processo e o castigo dos responsáveis por esse delitos. (O presente relatório também aborda o tema no capítulo "Direitos dos Menores").
D. O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO NA POLÍTICA, NO PROCESSO DECISÓRIO E NA VIDA PÚBLICA
16. Em seu Artigo 23, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que todos os cidadãos devem gozar dos direitos de "participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos", votar em eleições livres e justas e "ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país". A Constituição Federal dispõe que as mulheres e os homens têm idênticos direitos à cidadania e direito, em condições de igualdade, a votar, candidatar-se a cargos eletivos e ocupar cargos na administração pública.
17. Embora a participação da mulher na vida nacional e pública do Brasil tenha registrado grande avanço desde a Conferência de Nairóbi (1985),(31) é amplamente reconhecido que ela continua insuficientemente representada nas instituições do Estado e tem acesso limitado aos altos cargos do serviço civil e aos cargos por eleição popular.(32) O movimento feminino brasileiro tem procurado abordar essa situação por diferentes meios, entre os quais a promoção da reforma interna dos partidos políticos estruturados. Dada a reabertura do espaço para a atividade política ocorrida na década de 80, muitos partidos começaram a atentar para questões vinculadas aos direitos da mulher correligionária. Em 1981, as mulheres filiadas ao Partido dos Trabalhadores reivindicaram o estabelecimento de uma quota para assegurar 30% de participação feminina na liderança do PT.
18. Em termos gerais, as mulheres ocupavam 13,1% dos cargos eletivos do governo em 1995.(33) Em 1994, a percentagem de mulheres no Congresso era de 5,7%.(34) A mulher também está insuficientemente representada nas assembléias legislativas estaduais da Federação.(35) A primeira mulher Governadora de Estado foi eleita em 1994. No nível local, dados de 1992 indicam que havia 171 prefeitas municipais eleitas e 1 672 mulheres eleitas para as câmaras de vereadores dos 4 793 municípios do país.(36) Uma das medidas adotadas para aumentar a participação política das mulheres foi a aprovação da Lei 9100/95, segundo a qual todos os partidos políticos deveriam asseguram-se de que pelo menos 20% dos candidatos propostos às eleições de outubro de 1996 fossem mulheres.
19. No Poder Executivo, os dados referentes a 1995 indicam que 3,6% do cargos a nível ministerial e 14,7% dos cargos de nível subministerial eram ocupados por mulheres.(37) Antes do Governo atual, sete mulheres haviam sido titulares de ministérios. No Ministério das Relações Exteriores, as estatísticas relativas a 1994 indicam que três mulheres (2,94% do total) eram Ministros de Primeira Classe (a categoria mais alta no serviço diplomático).(38) No Poder Judiciário, apesar da introdução de um processo de seleção pública competitivo para as nomeações judiciais, quase nenhuma mulher em 1985, integrou os tribunais superiores. Nos tribunais superiores, por exemplo, dos 93 juizes integrantes em 1990, somente uma era mulher.(39) No Ministério Público, em fins de 1993, as mulheres ocupavam 26,9% dos cargos, o que representa aumento em comparação com os 20,4% correspondentes a 1986 e 11,1% em 1980.(40)
E. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
20. Nos países do hemisfério, as mulheres sofrem as conseqüências do tratamento injusto e discriminatório, expresso em violência, em todos os estratos sóci-econômicos, raciais e culturais.(41) A situação específica da violência contra a mulher no Brasil(42) gerou importantes ações dos setores governamental e não-governamental. No primeiro, uma das obrigações prioritárias do Conselho Nacional de Direitos da Mulher tem sido expor a questão da violência contra a mulher nos níveis políticos mais altos e levá-la ao debate público, trabalhando em prol das reforma de leis e apoiando os esforços que se realizam para assegurar que os responsáveis pelo cumprimento da lei e os servidores do Judiciário entendam as causas, a natureza e as conseqüências dessa violência.(43) Isso contribuiu para incorporar, no Artigo 26, VIII da Constituição de 1988, o compromisso explícito do Estado de criar mecanismos para abordar e combater a violência no âmbito familiar.(44) Em 1993, a Câmara dos Deputados instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito para estudar a situação da violência contra a mulher no Brasil.(45)
21. Como Estado Parte da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará", o Brasil assumiu uma série de obrigações específicas que, partindo da base, complementam as disposições mais gerais da Convenção Americana. A Convenção de Belém do Pará define no nível regional a violência contra a mulher como "qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na privada",(46)
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, que o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local, e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. "Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada" (Artigo 3) e a que todos os seus direitos e liberdades fundamentais sejam protegidos e respeitados (Artigos 4, 5). É importante mencionar que o direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui o direito "de ser livre de todas as formas de discriminação" e "a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação" (Artigo 6).
22. Os Estados Partes da Convenção de Belém do Pará convieram em adotar, "sem demora", políticas destinadas a prevenir e erradicar a violência contra a mulher (Artigo 7). Isto significa que as Partes estão obrigadas a assegurar que os agentes do Estado respeitem o direito da mulher a uma vida livre de violência e a agir com o devido zelo "para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher (tanto na esfera pública como na privada), e que todas as vítimas da violência tenham acesso a procedimentos jurídicos justos e eficazes. As leis ou práticas jurídicas que "respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher" devem ser abolidas.(47)
23. Desde meados da década de 80, o Brasil tem estado na vanguarda da região em matéria de desenvolvimento e implementação de estratégias para proporcionar serviços às mulheres vítimas de violência. Existem atualmente mais de 150 Delegacias de Defesa da Mulher em todo o país, que prestam serviços especializados às vítimas. Além de contarem com policiais especialmente treinadas para o cumprimento de funções normais relacionadas com a aplicação da lei, essas delegacias também pretendem oferecer serviços sociais e psicológicos integrados.
24. A violência doméstica é, de fato, a forma mais comum de violência contra a mulher no Brasil, e inclui o assassinato de cônjuges, a agressão doméstica, o abuso e o estupro.(48) O primeiro refúgio para vítimas de violência doméstica no Brasil foi aberto como projeto piloto em 1986. Por meio de convênios com as Secretarias Estaduais de bem-estar Social, o Conselho de Direitos da Mulher oferece incentivos para promover o estabelecimento de refúgios adicionais para mulheres agredidas e seus filhos. Mais recentemente, em 8 de março de 1996, o Governo Federal lançou o Programa Nacional para Prevenir e Combater a Violência Sexual e Doméstica. O programa prevê ações em várias frentes, inclusive em relação a uma proposta no sentido de revogar a qualificação arcaica de crimes contra os "costumes", dada a certos delitos sexuais usualmente praticados contra a mulher.
25. Ainda que as Delegacias representem um avanço extraordinário no sentido de que abordam as causas e conseqüências específicas da violência contra a mulher, sua capacidade de proteção dos direitos da mulher continua a ser limitada em razão da falta de recursos humanos e materiais, da preparação insuficiente de pessoal especializado e não-especializado (nos quadros gerais da polícia) para tratar de casos de violência e de questões gerais da mulher, e da insuficiente coordenação com o restante da organização policial.(49) As policiais especializadas existentes não podem atender a todas as vítimas. Nas áreas rurais em particular, as mulheres contam com muito poucos recursos oficiais contra a violência e para obter ajuda.(50)
26. Além disso, mesmo onde existem essas delegacias especializadas, é freqüente que as queixas não sejam totalmente investigadas ou processadas. Em certos casos, as limitações tolhem os esforços envidados para dar resposta a esses delitos. Em outros casos, as mulheres não apresentam queixa formal contra os agressores. Na prática, limitações das leis e de outra natureza freqüentemente expõem a mulher a situações em que ela mesma de vê obrigada a agir. De acordo com a lei, as mulheres devem formular suas queixas numa delegacia e explicar os fatos a um policial para que este possa preparar uma "denúncia de incidente". Os policiais que não tenham sido suficientemente preparados talvez não estejam em condições de prestar os serviços requeridos e, segundo se informa, alguns deles continuam a tratar as vítimas de tal forma que estas se sentem envergonhadas e humilhadas. Para certos delitos, como o de estupro, as vítimas devem apresentar-se ao Instituto Médico Legal, ao qual cabe a competência exclusiva em matéria de exames médicos requeridos por lei para processar a denúncia. Algumas mulheres desconhecem esse requisito ou não têm acesso a essa instituição de forma justa e necessária para obter as provas requeridas. Estes institutos tendem a localizar-se em áreas urbanas e, onde existem, muitas vezes não dispõem de pessoal suficiente. Ademais, mesmo quando as mulheres tomam as medidas necessárias para denunciar a prática de delitos violentos, não existe garantia de que estes serão investigados e processados.(51)
27. Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter revogado, em 1991, a arcaica "defesa da honra" como justificativa para o homicídio da mulher, muitos tribunais ainda hesitam em processar e punir os autores da violência doméstica.(52) Em certas áreas do país, persiste o uso da "defesa da honra" e, em algumas áreas, a conduta da vítima continua a ser um aspecto central a ser examinado no processo judicial relativo à ocorrência de um crime sexual. Em vez de se concentrar na existência dos elementos jurídicos do crime em questão, a prática de certos advogados de defesa - tolerada por alguns tribunais - acabam por tornar necessário que a mulher demonstre sua a pureza da sua reputação e a sua inculpabilidade moral para que possa utilizar os meios judiciais e legais à sua disposição. As iniciativas tomadas pelo setor público e pelo privado no sentido de fazer frente à a violência contra a mulher começaram a combater o silêncio que tradicionalmente tem ocultado esse crime, mas ainda é necessário superar as barreiras sociais, jurídicas e de outra ordem que contribuem para que a impunidade em tais crimes prevaleça.
F. CONCLUSÕES
28. No Brasil, a ação e a interação dos setores público e privado produziram muitos avanços dignos de menção na luta para assegurar o pleno gozo, em condições de igualdade, dos direitos humanos da mulher. O Estado deu início a um programa sem precedentes e proporcionou serviços policiais especializados para as mulheres vítimas de violência, que continuam a valer como modelo para outros países por sua amplitude e seu alcance. Mesmo assim, as necessidades críticas que têm sido atendidas com o programa só se tornaram mais aparentes com o passar do tempo, demonstrando a necessidade de promover o investimento e o desenvolvimento para satisfazer as reivindicações das vítimas.
29. Houve avanços significativos e também reformou-se a lei, com o fim de revogar disposições discriminatórias. Não obstante, tal como se especifica no parrágrafo 8, as leis obsoletas que permanecem no texto da lei (apesar de terem sido identificadas como arcaicas) e as práticas anacrônicas que persistem são incompatíveis com as obrigações internacionais do Brasil. Além disso, essas disposições e práticas perpetuam estereótipos que tolhem ainda mais a capacidade das mulheres de exercer seus direitos e liberdades. Isto deve ser modificado em função da condição do Brasil como Parte da Convenção Americana, da Convenção de Belém do Pará e da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
30. Os delitos que estão incluídos no conceito de violência contra a mulher constituem violações dos direitos humanos nos termos da Convenção Americana e nos termos mais específicos da Convenção de Belém do Pará. Quando são cometidos por um agente do Estado com o uso de violência contra a integridade física e/ou mental de uma mulher ou um homem, a responsabilidade direta cabe ao Estado. Além disso, cabe ao Estado a obrigação, de acordo com o Artigo 1.1 da Convenção Americana e o artigo 7.b da Convenção de Belém do Pará, de agir com o devido zelo para prevenir as violações de direitos humanos. Isso significa que, mesmo quando a conduta não seja originariamente imputável ao Estado (por exemplo, porque o agressor é anônimo e não é agente do Estado), um ato de violação pode acarretar a responsabilidade estatal, "não pelo ato em si, mas pela falta do devido zelo para prevenir a violação ou a ela responder, tal como requer a Convenção".(53)
31. Tal como indicou o Relator Especial das Nações Unidas sobre a Violência, onde se demonstrar que a existência de proteções jurídicas é insuficiente para proteger o direito da mulher a uma vida livre de violências, "os Estados devem encontrar outros mecanismos complementares para prevenir a violência doméstica", incluindo a educação do público, a preparação do pessoal pertinente e o financiamento de serviços diretos de assistência às vítimas.(54) O Brasil tomou medidas inovadoras e louváveis a fim de criar e implementar esses mecanismos e indicou, no seu Programa de Direitos Humanos e em outras normas de política, sua disposição de consolidar os programas existentes e obter maiores proveitos.
32. Ocorrendo violações, deve o Estado investigar os casos, submeter seus autores à justiça e assegurar a existência de mecanismos de compensação . Em 1980, a organização não-governamental brasileira "SOS Mulher" iniciou sua campanha de combate à violência contra a mulher sob o lema: "O silêncio é cúmplice da violência". Em 1993, os participantes da Primeira Conferência Nacional de Organizações Populares contra a Violência Contra a Mulher, realizada em São Paulo, acrescentaram um novo lema: "A impunidade é cúmplice da violência". A informação de que dispõe a Comissão indica que ainda restam outras medidas a adotar para assegurar que as queixas de violência contra a mulher, em particular no ambiente doméstico, sejam totalmente investigadas e punidas de acordo com a lei.
G. RECOMENDAÇÕES
33. A Comissão recomenda que o Estado tome medidas adicionais para enfrentar a discriminação contra a mulher nos setor público e privado, incluindo: a) uma educação livre de padrões estereotipados(55); b) a revogação de disposições legais arcaicas; c) garantir que toda denúncia de discriminação seja prontamente investigada, processada e punida.
34. Que o Estado continue e amplie as medidas para promover a participação de mulheres em postos de decisão em todos os níveis da esfera pública ou privada e em particular, que assegure que as mulheres estejam ocupando equilibradamente posições em todo o nível do governo e do serviço público.
35. Que o Estado tome medidas adicionais para assegurar a plena participação das mulheres na vida econômica; especialmente evitando a disparidade a nível de remuneração; assegurando o pleno gozo dos direitos trabalhistas pelas mulheres e evitando práticas discriminatórias.
36. Que o Estado amplie a disponibilidade de respostas apropriadas em relação aos crimes de violência contra a mulher; incluindo sua investigação, processamento e punição simplificando os requisitos para que a mulher possa denunciá-los e impedindo preconceitos em seu tratamento; melhorando o treinamento de seus agentes a respeito das causas, efeitos dessa violência e os recursos existentes para evitá-la e denunciá-la; e atendendo à recuperação física e psicológica das vítimas.
Fonte: http://www.mensagensvirtuais.com.br/
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