quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Você pode ser candidato(a) a Facista?

Colaboração: Gabryella Ruiz


The reader (O leitor) é um filme inglês e alemão, vencedor de Oscar em 2008, dirigido por Minguela e Polack baseado no romance Der Vorleser (1995) de Bernhard Schlink.

Abaixo comentário de Paulo Ghiraldelli Jr:


O ano é 1958. Hanna Schmitz (Kate Winslet) volta para casa após mais um dia exaustivo de trabalho. Caminha rápido pelo escuro corredor que dá para a escada de sua kitnet, mas não sem perceber que havia pisado em uma poça de vômito. Ela se volta e localiza em um banco, no corredor, um adolescente que ali havia parado por se sentir mal no caminho entre a escola e sua casa. Hanna limpa o chão e, em seguida, o acolhe. Cuida dele. O garoto, meses após, ao melhorar de saúde, volta ao local para agradecer.
Ele é Michael Berg (Ralph Finnes), um bom menino de classe média alta, culto, e inicia com Hanna um romance de verão. Algo fantástico e sedutor para ele, uma vez que Hanna não é só uma linda mulher, mas é também mais velha. O que Hanna mais gosta é de sexo e de ouvir Michael ler livros para ela. Uma vez com ela, Michael ganha confiança em todas as suas atividades – torna-se “o homem” rapidamente. Hanna é mais velha, sim, mas, para ele, tem a sensibilidade de uma criança. Todavia, um dia após uma promoção no serviço de ajudante de cobrador em uma companhia de bonde, Hanna desaparece sem deixar aviso. Este é o resumo esquemático e grosseiro da primeira metade de The Reader.



Anos 60. É a segunda parte do filme. Michael reencontra Hanna, abruptamente, em um julgamento. Ele está lá como aluno de Direito, junto com sua turma e com seu professor. Só então, já no interior da sala, percebe que é Hanna, sua ex, que está sendo julgada. Ela é acusada de crimes durante a II Guerra Mundial, quando então atuou como guarda de campo de concentração, em serviço regular da SS.

Michael não se mostra para Hanna, e assiste ao julgamento completamente torturado pelo que escuta. Durante o julgamento, Hanna é completamente redescrita por ela mesma, na medida em que se vê obrigada a responder às perguntas ali postas. A doce loira da primeira parte do filme, que nós, o público, e também Michael, conheciam, dá lugar não a uma mulher má, uma nazista sanguinária, mas simplesmente à construção mais perfeita do que foi o tipo ideal do recrutado pelo nazismo.



Sabemos que o tipo ideal, como Max Weber o definiu, é uma caricatura proposital. Mas o recrutado nazista não tem como ser representado por uma caricatura, pois quando se faz dele uma caricatura, esta se revela como sendo ele mesmo. No caso do recrutado nazista o tipo ideal e o tipo empírico coincidem.

Todos os atos de Hanna, da primeira metade do filme, são redescritos pelo que ela própria fala dela na segunda metade. Não de uma maneira firme e rude, e sim como se estivesse realmente tomando consciência do que fez no passado naquele exato momento. Tudo então transborda na verdade de Hanna. Surge o seu cotidiano na guerra, de como fazia o serviço e, enfim, do porque ela adorava que contassem histórias para ela. Nasce ali o mais perfeito personagem do mundo fascista. Eis que entendemos, então, o significado dos primeiro atos de Hanna ao encontrar Michael: limpar o vômito do chão, limpar a boca de vômito do garoto e, depois, lavar sua mão com certo esmero. Aliás, o banho é uma constante entre eles. Não raro, o banho com bucha, com Hanna lavando-o não como quem lava um amante, mas como quem limpa crianças ou … prisioneiras. Michael também entende tudo isso conosco, no mesmo momento.

Hanna não se desespera durante o julgamento, embora comece a ficar perturbada à medida que percebe que, aos olhos de todos ali, ela havia cometido um crime, havia sido cruel. Especificamente: houve um fogo em um local em que estavam as prisioneiras e as guardas decidiram que não abririam as portas, e assim todas morreram queimadas, exceto uma que, enfim, estava ali na condição de testemunha de acusação. Inquirida sobre a razão de não abrir as portas para as prisioneiras, Hanna respondeu com um soco na mesa, dizendo: “mas iria ficar uma bagunça depois, como iríamos recolhê-las?” E mais: “era necessário manter a ordem”.



Limpeza sempre, higiene sem reflexão, ordem a qualquer preço – tudo que uma criança pré-adolescente, muito afeita às regras, determina para o mundo. Sabemos que a pré-adolescência é a época em que a criança parece pressentir que poderá dar um segundo passo, o do desregramento, o de perda da fé em tudo que é estável, e então, pensando vacinar-se contra tudo isso, torna-se a guarda de si mesmo, dos colegas, da casa e, se puder, do mundo. Tudo – ou quase tudo – que é “bagunça”, que pode indicar a não-regra, tem de ser condenado. O pré-adolescente é doce e, ao mesmo tempo, um ditador. Está entre o tempo da infância, em que os pais e a sociedade lhe dão tudo, e o tempo em que os pais não são mais heróis e a sociedade deve ser modificada – simplificada. Lutando para saber qual a sua identidade, ele se enrijece no culto irrefletido de determinadas regras. Quando alguém pode fixar-se para sempre neste tipo de “mundo do pré-adolescente”? Muitas vezes. Um ambiente rural ou, melhor dizendo, um ambiente “de tipo rural” pode causar isso. Um ambiente castrador, que não ganha muitos, pode agarrar outros para sempre. As melhores análises dos filósofos da Escola de Frankfurt localizaram os nazistas no perfil de tipos infantis petrificados em determinados estágios do desenvolvimento psico-social, incapazes de questionarem ordens, uma vez tendo construído sua identidade exatamente na capacidade de fazerem as ordens contra a “bagunça” serem cumpridas a qualquer preço.



Uma vez no tribunal, Hanna se mostrou perplexa, entristecida, ao ver que seu gosto pela ordem, pela limpeza, pelo cumprimento de rotinas podia ser avaliado como um erro. Ali no julgamento, Hanna se viu como um pré-adolescente que se defronta com o irmão mais velho, já adolescente, e o vê todo errado mas, ao mesmo tempo, como alguém que … pensa ou quer pensar.

É claro que isso que digo, até aqui, é pouco sobre The Reader. Há muito mais. Ora, um dos principais segredos do filme, fiquem tranqüilos, não vou contar aqui. Muito menos vou falar do fim do filme! O que disse até aqui já serve para que possamos deixar de lado a pergunta “o que é o fascismo”, que é uma pergunta pouco útil, e voltar nossa indagação para a pergunta “o que é o comportamento fascista”, uma pergunta melhor. O comportamento fascista é exatamente este: o de “Maria-vai-com-as-outras”. Onde há regras postas de maneira não discutidas e, portanto, feitas com “limpeza” e não com a “bagunça” da discussão e com o alvoroço e a complexidade do parlamento da democracia, eis aí o que brilha aos olhos do pré-adolescente reificado, o candidato a fascista. Maria não vai com as outras se tiver de pensar e questionar e discutir e refletir sob vários pontos de vista. Perspectivar não é para Maria, a Maria-vai-com-as-outras.



O fascista não é aquele que adota a posição da maioria da multidão contra a minoria. Ele é aquele que até pode adotar a atitude da minoria. Sua questão não é esta. Sua questão é a da não reflexão. Quando ele pensa que reflete, ele ainda está sob regras endurecidas. Pois o que o marca é o simplismo, ou seja, aquilo que caracteriza a visão de mundo do “tipo pré-adolescente”: tudo que está desordenado parece ser complexo, a ordem, ao menos a ordem que é a que vai despertar o candidato ao fascista, é a ordem que torna tudo plano, simples – simplório.

Encontramos maiorias e minorias fascistas. Ficamos espantados que grupos sociais minoritários, que deveriam lutar por uma sociedade democrática porque nelas eles ganhariam direitos, se revoltam contra ela e optem por comportamentos conservadores, violentos, pseudo-intelectuais e, enfim, fascistas. É que estamos acostumados a ver o fascismo nas turbas grandes, na multidão que esmaga um grupo. Mas, às vezes, a questão não é esta, e sim a ordem. Qual ordem é a mais simples? Qual ordem é fácil de engolir sem pensar, sem crítica? Qual modo de viver é limpo porque é plano, liso, simplório? São essas as perguntas do pré-adolescente. Ele quer viver de modo a identificar o certo e o errado e escapar do irmão mais velho que, uma vez adolescente, pode estar desregrado. Ele se orgulha, junto a todos, de não ter dúvidas. Ele sabe. Ele distingue. Mas, enfim, não é ele mesmo quem faz isso. Porque ele aceitou as regras mais simples, e assim as tomou para si. Ele foi avesso a uma frase ou pergunta: “que tal pensar sob mais e mais perspectivas antes de decidir?”



Paulo Freire e outros românticos viram no homem simples um arauto da liberdade. Mas, Paulo Freire sabia que essa qualificação era perigosa. Por isso ele tratava o desenraizado – que ele chamou às vezes de “oprimido” – como aquele a quem se deveria mostrar que ele tinha, sim, cultura. É como se Paulo Freire pressentisse que se o desenraizado acredita que o mundo lhe é complexo, e que ele, como desenraizado, é despossuído e sem valor, ele pudesse rapidamente desejar a “vida simples”. O homem e a mulher que passam nas bancas de jornais e olham interessados para as revistas com estampas do tipo “vida simples” ou “viva sem esquentar a cabeça” ou “não critique, trabalhe” são pessoas que deveriam se examinar. Por que gostam tanto do que não causa esforço reflexivo? Pode-se imaginar que elas já estejam próximas de uma situação de docilidade para com um chefe, um pai, um super-pai, um todo poderoso que, de certo modo, se apresenta como ela, ou seja, infantil. Hitler e Mussolini tinham essas características: docilidade em alguns momentos, como que se mostrando igual aos que governava, as crianças que eles guiavam.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Homenagem a Luiz Gonzaga