quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Corrupção - Será que todo mundo tem seu preço?

Por: Sílvia Mendonça

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O que faz de alguém um corrupto:
desviar US$ 1 milhão de uma concorrência
ou subornar um guarda de trânsito?
Os caminhos da corrupção são tortuosos
e os motivos mais surpreendentes
podem levar uma pessoa a se corromper

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“Somos todos corruptos”. Como você se sente ao ouvir essa frase? De 20 anos para cá, ela deixou um rastro de espanto e indignação quando se tentava justificar a tragédia nacional das CPIs, PCs, funcionários fantasmas, Casa da Dinda, entre outras, e acabou incorporada ao anedotário brasileiro. Mas também deixou uma incômoda sensação de dúvida entre os cidadãos, como se olhassem para um espelho e não gostassem do que viam. E hoje, quando o assunto volta ao cenário político, não seria o caso de questionar se a frase é verdadeira? De acordo com os especialistas no tema, a resposta é sim. Faz parte da condição humana a tendência à corrupção. O que não quer dizer que devemos nos conformar com ela.

Uma praga tão antiga quanto o próprio homem, também se perdem no tempo as manifestações de indignação e vergonha que provoca. Tanto assim que é muito raro que se exponha à luz do Sol, como está acontecendo recentemente no Brasil. É da essência da corrupção (e seu instrumento explícito, o suborno) o subentendido, o por fora, o que não foi dito nem ficou escrito. Sua ambigüidade é tamanha que cuidadosamente se evita a palavra suborno – substituída por eufemismos –, e isto em todas as línguas.

Embora o Antigo Testamento já condenasse esse mal (“Não aceitarás presentes porque cegam os olhos dos sábios e comprometem a causa dos justos”), uma estranha dicotomia cerca o assunto. Em todas as épocas e em todos os lugares sempre existiu certa complacência social para com os acusados de dar ou receber presentes em troca de favores – e até pouco tempo a impunidade era a regra. O que é até compreensível, já que o mal que ela causa não é de efeito imediato e pessoal como um assassinato, um roubo, um estupro. A corrupção é um crime contra um país e um povo.

Cada vez que um funcionário público é subornado – e o fato vem a público – a confiança da população no Governo sofre um grande abalo. Quando se discute o prejuízo causado à sociedade pela corrupção, deixa de ter importância o valor material desviado – o pior é o custo psicológico, pois um governo corrupto deixa o país cínico. O lado mais perverso dessa situação é que a corrupção é altamente corruptora – quanto mais se corrompe e se mantém a impunidade, mais apática fica a sociedade para reagir e mais facilmente será contagiada por esse vírus devastador.

Por isso não existe Estado corrupto sem indivíduos corrompidos. O cidadão comum que se mostra indignado com o espetáculo “Deputado pede dinheiro à empreiteira para incluir obra no orçamento da União” é o mesmo que considera “normal” subornar o guarda de trânsito que vai multá-lo por excesso de velocidade. Os dois exemplos são perfeitamente enquadráveis na definição de suborno dada pelo professor americano John T. Nooman Jr., autor de um livro definitivo sobre o assunto: “Suborno: Incentivo que Influencia Indevidamente o Desempenho da Função Pública Destinada a ser Exercida Gratuitamente”.

Os cientistas sociais vão ainda mais a fundo quando se trata de enquadrar a corrupção: como o suborno envolve sempre uma função pública (legislativa, executiva ou judiciária), consideram que há uma traição da confiança e lealdade dos cidadãos, em favor do lucro de indivíduos ou grupos. Em que você pensou quando leu isso? Na máfia italiana, nos gangsteres de Al Capone, no caso Watergate, no escândalo da Lockheed ou no Cartel de Medelin? Provavelmente. Em todos esses casos, as conseqüências foram ou a punição e destituição de membros do Governo ou o descrédito da população. Mas não precisamos ir tão longe nem voltar tanto no tempo. Basta lembrar do esquema do mensalão, denunciado no primeiro governo Lula, envolvendo o então Ministro-Chefe da Casa Civil, José Dirceu, ou do recente afastamento (nada voluntário) de Renan Calheiros da presidência do Senado, acusado, entre outras coisas, de favorecer empreiteiras em licitações.

Mas, se somos todos propensos à corrupção, por que não deixar simplesmente que ela domine tudo? Porque isso seria a volta à barbárie. A idéia de civilização pressupõe o abandono de desejos e interesses pessoais em favor de um bem comum. É claro que essa mudança exige uma grande dose de sacrifício e a superação do nosso egoísmo natural. Mas só seguindo padrões éticos podemos aprender a ser leais uns com os outros e a conviver harmoniosamente em sociedade. É isso que a corrupção quebra – e o interesse próprio passa a ser motivo normal na maioria das ações. Por que eu não devo aceitar o milhão de dólares que resolveria minha vida em troca da manipulação de uma concorrência pública? A resposta é óbvia e basta olhar em volta para ver o resultado: o país passa a ser conduzido de fato por uma máquina paralela e particular de poder, indiferente ao bem-estar de seus cidadãos.

Se a corrupção é um fatalismo da natureza e pode ser controlada, o que exatamente diferencia alguém que cede de outro que resiste ao suborno? Os caminhos da corrupção dentro da nossa alma são variados e surpreendentes. Veja por onde ela pode nos atingir.

“A lei, ora a lei...”

O homem tem uma capacidade inata para o egoísmo e a maldade, que precisam ser dominados para se viver em sociedade – e isso só é possível se as relações sociais forem disciplinadas por regras ou leis. Acatá-las exige enorme sacrifício e total desprendimento, porque elas são sempre limitadoras: da nossa liberdade, do nosso prazer, dos nossos interesses. É um processo tão difícil para o ser humano que precisa ser “implantado” dentro do nosso cérebro. Os psicanalistas chamam a isso de “internalizar” a lei, uma aceitação íntima dessas regras.

Quando o indivíduo internaliza a lei, explicam, ele a segue o tempo todo, não é preciso que esteja alguém do seu lado lembrando: olha a lei, olha lei. De acordo com esse raciocínio, não é o risco de uma multa que faz uma pessoa parar no sinal vermelho, mesmo que seja de madrugada e a rua esteja vazia, mas a aceitação da regra. Ela assume um compromisso desinteressado para o bem-estar dos outros e é leal a esse sistema.

E como isso se quebra? Quando perdemos a fé na eficácia da lei e do governo, porque eles foram manipulados por grupos em interesse próprio. E se a lei se torna vazia de sentido, é como se não existisse. Apenas será cumprida se for diretamente cobrada pela figura do fiscal, da malha fina do Imposto de Renda ou do policial. Passamos a raciocinar assim: se a lei não está me ameaçando, não a cumpro. Não tenho sentimento de estar fazendo algo errado.

Se formos criados dentro de tal sistema, não sabemos lidar com os princípios e normas organizadores da vida. Passaremos a usar a lei a nosso favor, em vez de nos submetermos a ela. Assim, cria-se um outro modo de olhar a corrupção: se alguém pode tirar vantagem pessoal de um negócio de Estado, por que não fazer como todos?

“Sabe com quem está falando”

Um dos impulsos mais fortes no homem é o desejo de poder. E, quando ele prepondera sobra os outros, entorpece a nossa consciência e se coloca acima de questões morais e éticas. O melhor exemplo desse comportamento é o personagem Fausto, de “O Inferno”, de Dante: o homem que vende a alma ao diabo na tentativa de conseguir algo que interessa apenas a ele.

O sistema em que vivemos estimula as tendências egoístas, competitivas, de domínio sobre o outro. Se a tendência de um indivíduo ao poder já é forte e ele nasce numa família que valoriza a competição e o levar vantagem sobre o outro, não vai jogar limpo.

Para os psicólogos, uma pessoa obcecada pelo poder acredita-se especial e acima da média dos mortais, onipotente. Esse desvio é de tal maneira entorpecedor que ela chega a se vangloriar de ser corruptível, entendendo esse fato como um sinal de grande habilidade e esperteza. Essa pessoa tem uma visão utilitária dos outros, encara-os como objetos, peças de seus negócios. Ela está sempre tendo de escolher entre ser fiel às noções de respeito e lealdade ou deixar que sua consciência seja narcotizada em nome de uma satisfação pessoal de poder.

“Quero ser alguém”

É quase insuportável, para nós, a idéia de que somos apenas um ponto na multidão. O ser humano tem um grande desejo de se singularizar, de se destacar, de escapar da idéia de insignificância. E a maioria de nós consegue construir mecanismos mentais saudáveis para superar esse sentimento.

Mas quando o complexo de inferioridade predomina de forma obsessiva, uma pessoa pode ser movida por um ressentimento ou um desejo de vingança. O que a leva a achar “justo” que também roube dos outros para obter brilho fácil, o destaque, o favorecimento. E a corrupção é o atalho mais rápido para que ela chegue onde quer.

“Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”

O espírito de clã é praticamente instintivo no ser humano. Temos o impulso básico para defender e privilegiar o “nosso grupo” (família, amigos) em detrimento dos “estranhos”. E esse sentimento precisa ser minimizado para vivermos numa sociedade civilizada, só possível com um comprometimento sincero com o bem-estar dos outros.

De acordo com os cientistas sociais, em todo país mais organizado existe a figura do outro abstrato. Se a lei diz “você não pode sujar a calçada”, é porque existe o outro abstrato, um cidadão como nós, que vai passar pela mesma calçada e tem todo o direito de encontrá-la limpa. Se rompermos a lei, não estamos apenas atingindo-a, mas atingindo o outro abstrato que vai passar e encontrar a calçada suja – e ainda achar que pode fazer o mesmo.

Mas se a mentalidade de clã predomina numa pessoa ou numa sociedade, nós só enxergaremos o outro familiar e, em nome dele, tudo se justifica: não estamos participando da corrupção, mas “ajudando” a família. Um digno exemplo dessa atitude é a frase que correu por varias bocas sobre o Esquema PC Farias: “Se o presidente (Collor de Mello) tem um amigo que quer ajudá-lo, que mal há nisso?” Tudo se justificava por ser uma ação entre amigos.

Em seu aspecto mais radical, essa mentalidade desemboca no nepotismo e em confrarias como a máfia e seu código de ética particular. O outro só interessa se é familiar; não sendo, ele não tem a menor importância. Para os envolvidos nesse esquema, passa a ser natural trabalhar sistematicamente para corromper o governo, a fim de manter os privilégios do grupo ou da família.

“É dando que se recebe”

A mesma atitude de indiferença ao outro abstrato pode resultar na ausência total de lealdade e solidariedade: o ego se torna o soberano absoluto. O desejo alheio jamais nos interessará e não aceitaremos que nos imponham restrições em benefícios de outros. Em nome de uma satisfação pessoal, podemos passar por cima de tudo.

O que cria esse comportamento, provavelmente é uma relação “quebrada” com a realidade: incapaz de aceitá-la, essa pessoa está sempre disposta a suborná-la. Estará sempre disposta também a se deixar subornar para atingir as vantagens imaginárias que busca. Tal pessoa só se ligará aos outros para tirar vantagem, e suas relações obedecem apenas á conveniência, e não á lealdade ou à afetividade.

Alguns psicólogos comparam a corrupção ao consumo de drogas. A vida, segundo eles, parece tão banal, tão limitada para esse tipo de pessoa, que ela precisa de uma droga; e como um drogado nunca pára na primeira dose. Ao fazer um pacto com as forças destrutivas, está acreditando num facilitador mágico. Tudo começa como um pacto luminoso e termina numa servidão degradante.

Alguém dominado por essa mentalidade não apenas se corromperá, sem grandes resistências, como estará imune a qualquer apelo de solidariedade coletiva em caso de crise de um país ou mesmo uma guerra.

A situação parece irremediável para você?
Quando estamos no meio de uma tempestade,
dificilmente podemos ver a saída.
Mas que ela existe, existe.

Para o filósofo José Américo Peçanha, “embora seja próprio da condição humana alguém ser passível de corrupção”, o desconforto que sentimos diante de um ato corrupto indica “que há uma situação melhor”. É a injustiça – e o sentimento de inconformismo que ela provoca – que nos leva a pensar na justiça. “Alcança-se a noção de bem atravessando a noção de mal”, argumenta Peçanha.

O ser humano é o único animal que procura superar suas limitações. Desejamos sempre ir além, conseguir mais, lembra o filósofo. E isso quer dizer mais beleza, mais justiça, mais clareza.

A luta contra a corrupção,
portanto, é uma luta para
recuperar esse desejo.

Goiânia (GO), janeiro de 2008


Silvia Mendonça
Jornalista, fotógrafa,
escritora, poeta
revisora, produtora.
 
Publicado no Recanto das Letras em 27/01/2008
Código do texto: T834807

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