Marcelo Rubens Paiva
Eu ia dizer "caros milicos". Não sei se é um termo ofensivo.  Estigmatizado é. Preciso enumerar as razões?
Parte da sociedade civil quer rever a Lei da Anistia. Sugeriram a  Comissão da Verdade, no desastroso Programa Nacional de Direitos  Humanos, que Lula assinou sem ler. Vocês ameaçaram abandonar o governo,  caso fosse aprovado.
 
Na Argentina, Espanha, Portugal, Chile, a anistia a militares  envolvidos em crimes contra a humanidade foi revista. Há interesse para  uma democracia em purificar o passado. 
Aqui, teimam em não abrir mão do perdão. E têm aliados fortes, como o  presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o ministro da Defesa, Nelson  Jobim, que apesar de civil apareceu num patético uniforme de combate na  volta do Haiti. Parecia um clown.
Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes,  tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura. Devem ter navegado  na contracultura, dançado Raul Seixas, tropicalistas. Usaram cabelos  compridos, jeans desbotados? Namoraram ouvindo bossa nova? Assistiram  aos filmes do Cinema Novo?
Sabemos que quem mais sofreu repressão depois do Golpe de 64 foram  justamente os militares. Muitos foram presos e cassados. Havia até uma  organização guerrilheira, a VPR, composta só por militares contra o  regime.
Por que abrigar torturadores? Por que não colocá-los num banco de  réus, um Tribunal de Nuremberg? Por que não limpar a fama da corporação?      
Não se comparem a eles. Não devem nada a eles, que sujaram o  nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma tradição que nos honra,  garantiu a República, o fim da ditadura de Getúlio, depois de combater  os nazistas, e que hoje lidera a campanha no Haiti. 
Sei que nossa relação, que começou quando eu tinha 5 anos, foi  contaminada por abusos e absurdos. Culpa da polarização ideológica da  época.     
Seus antecessores cassaram o meu pai, deputado federal de  34 anos, no Golpe de 64, logo no primeiro Ato Institucional. Pois ele  era relator de uma CPI que investigava o dinheiro da CIA para a  preparação do golpe, interrogou militares, mostrou cheques depositados  em contas para financiar a campanha anticomunista. Sabiam que meu pai  nem era comunista?
Ele tentou fugir de Brasília, quando cercaram a cidade. Entrou num  teco-teco, decolou, mas ameaçaram derrubar o avião. Ele pousou, saltou  do avião ainda em movimento e correu pelo cerrado, sob balas. 
Pulou o muro da embaixada da Iugoslávia e lá ficou, meses, até  receber o salvo-conduto e se exilar. Passei meu aniversário de 5 anos  nessa embaixada. Festão. Achávamos que a ditadura não ia durar. Que  ironia…
Da Europa, meu pai enviou uma emocionante carta aos filhos,  explicando o que tinha acontecido. Chamava alguns de vocês de "gorilas".  Ri muito quando a recebi.     
Ainda era 1964, a família imaginava  que fosse preciso partir para o exílio e se juntar na França, quando ele  entrou clandestinamente no Brasil.     
Num voo para o Uruguai, que  fazia escala no Rio, pediu para comprar cigarros e cruzou portas, até  cair na rua, pegar um táxi e aparecer de surpresa em casa. Naquela  época, o controle de passageiros era amador.
Mas veio a luta armada, os primeiros sequestros, e atuavam justamente  os filhos dos amigos e seus eleitores – ele foi eleito deputado em 1962  pelos estudantes.    
A barra pesou com o AI-5, a repressão caiu  matando, e muitos vinham pedir abrigo, grana para fugir. Ele conhecia  rotas de fuga. Tinha um aviãozinho. Fernando Gasparian, o melhor amigo  dele, sabia que ambos estavam sendo seguidos e fugiu para a Inglaterra.  Alertou o meu pai, que continuou no País.
Em 20 de janeiro de 1971, feriado, deu praia. Alguns de vocês  invadiram a nossa casa de manhã, apontaram metralhadoras. Depois, se  acalmaram. Ficamos com eles 24 horas. Até jogamos baralho. Não pareciam  assustadores. Não tive medo. Eram tensos, mas brasileiros normais.
Levaram o meu pai, minha mãe e minha irmã Eliana, de 14 anos. Ele foi  torturado e morto na dependência de vocês. A minha mãe ficou presa por  13 dias, e minha irmã, um dia. 
Sumiram com o corpo dele, inventaram uma farsa (a de que ele tinha  fugido) e não se falou mais no assunto. 
Quando, aos 17 anos, fui me alistar na sede do 2º Exército, vivi a  humilhação de todos os moleques: nos obrigaram a ficar nus e a correr  pelo campo. Era inverno.     
Na ficha, eu deveria preencher se o pai  era vivo ou morto. Na época, varão de família era dispensado. Não havia  espaço para "desaparecido". Deixei em branco.     
Levei uma dura do  oficial. Não resisti: "Vocês devem saber melhor do que eu se está  vivo." Silêncio na sala. Foram consultar um superior. Voltaram sem  graça, carimbaram a minha ficha, "dispensado", e saí de lá com a alma  lavada.
Então, só em 1996, depois de um decreto-lei do Fernando Henrique,  amigo de pôquer do meu pai, o Governo Brasileiro assumiu a  responsabilidade sobre os desaparecidos e nos entregou um atestado de  óbito.
Até hoje não sabemos o que aconteceu, onde o enterraram e por quê?  Meu pai era contra a luta armada. Sabemos que antes de começarem a  sessão de tortura, o brigadeiro Burnier lhe disse: "Enfim,  deputadozinho, vamos tirar nossas diferenças."
Isso tudo já faz quase 40 anos. A Lei da Anistia, aprovada ainda  durante a ditadura, com um Congresso engessado pelo Pacote de Abril,  senadores biônicos, não eleitos pelo povo, garante o perdão aos colegas  de vocês que participaram da tortura.
Qual o sentido de ter torturadores entre seus pares? Livrem-se deles.  Coragem. 
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo – sábado – 30/1/2010
Fonte: 
http://www.psolsp.org.br/osasco/?p=393